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Diário de Bordo #2 | A pergunta chata da tradução

Este é Lúcifer (Gustave Doré), mas
poderia ser o tradutor na sua melancolia.

Quando me perguntam o que é tradução, ou mesmo para quê serve o traduzir, uma centena de respostas borbulham na minha cabeça e nenhuma delas parece me fazer sentido por completo. Na verdade, falar do ato traduzir é falar sobre os sentidos e sem sentido jamais existe a tradução. É necessário ter em mente o que chamo, com base em leituras, de 1) “propósitos da tradução” no 2) “dado momento da tradução” para que possamos encontrar ou construir o sentido pelo qual buscamos. Afinal, nada tem sentido a menos que seja construído – inclusive e com a participação de diversos atores.

Se uma das funções da linguagem é comunicar, traduzir é comunicar duas (ou mais) vezes mais. Ou simplesmente seria carregar uma mensagem de uma língua para outra? No âmbito da minha vasta ignorância sobre o assunto (visto que me considero sempre imaturo diante do vasto universo da tradução), seria injusto para o ofício assumir-se como tal, como um trem cujo exercício se limita a mecanismos de carga, transporte e descarga. O tradutor não é um condutor de cargas, com todo o respeito ao ofício daquele que transporta, mas um arquiteto das palavras cuja função é recriar o que já foi dito; é ser coautor fazendo algo “nascer de novo” e, muitas vezes, a partir de um ato luciferino que me dá imenso prazer (salve os Campos).

A linguagem é a tradução do pensamento, aprendi com os atos desmedidos de Boris Schnaiderman. Traduzimos o pensamento em palavras ou em choro para demonstrar a dor, a fome, a angústia etc. em um exercício intercorporal, ensinou-me a filosofia. E, assim, a todo o instante, estamos fazendo tradução (inclusive, neste momento em que traduzo palavras pensadas em palavras escritas para que possam ser lidas e adquiram novos sentidos). Estamos repetindo, em outros termos, em outras formas, em outras cores e palavras tudo aquilo que já foi dito outrora. ■


Texto originalmente publicado em 08 jul. 2019, depois atualizado no LinkedIn em 11 mai. 2022 e, por último, neste blog em 25 fev. 2023.

Comentários

  1. Respostas
    1. Só não sei traduzir o amor (ainda), somente sentir. Obrigado! <3

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    2. Se ficar boa a tradução é mérito do tradutor. Se ficar ruim pode-se colocar a responsabilidade no texto original. Ou o contrário.

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    3. Se ficar boa a tradução é mérito do tradutor. Se ficar ruim pode-se colocar a responsabilidade no texto original. Ou o contrário.

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    4. Às vezes, é a tradução que salva a obra.

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  2. Amei a "recriação", o "falar duas vezes". É bem isso. Ainda acrescento, reinventar.

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    1. São termos recorrentes nos Estudos da Tradução, mas o "falar duas vezes" realmente foi um insight. Reinventar é exatamente o que fazemos (e devemos, ou precisamos, fazer) na tradução. Ainda mais se for literária. Obrigado pelo seu comentário! :-)

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  3. Como sempre, um excelente texto, querido!

    Esta matéria pode ser do teu interesse:

    www.folha.uol.com.br/ilustrissima/2019/06/licoes-de-dostoievski-e-tolstoi-a-um-tradutor-brasileiro.shtml

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    1. Obrigado, querido Marcel! Irei ler a matéria com bastante carinho e depois comentar aqui. :-)

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