MARABÁ
(Parênteses inseridos para esclarecimento de palavras e expressões)
Eu vivo sozinha;
ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá?
Se algum dentre os
homens de mim não se esconde:
– “Tu
és,” me responde,
“Tu
és Marabá!”
– Meus
olhos são garços, são cor das safiras,
– Têm
luz das estrelas, têm meigo brilhar;
– Imitam
as nuvens de um céu anilado,
– As
cores imitam das vagas do mar!
Se algum dos guerreiros
não foge a meus passos:
“Teus
olhos são garços,”
Respondo anojado, mas
és Marabá:
“Quero
antes uns olhos bem pretos, luzentes,
“Uns
olhos fulgentes,
– É
alvo meu rosto da alvura dos lírios,
– Da
cor das areias batidas do mar;
– As
aves mais brancas, as conchas mais puras
– Não
têm mais alvura, não têm mais brilhar. –
Se ainda me escuta meus
agros delírios:
– “És
alva de lírios”,
Sorrindo responde, mas
és Marabá:
“Quero
antes um rosto de jambo corado,
“Um
rosto crestado
“Do
sol do deserto, não flor de cajá.”
– Meu
colo de leve se encurva engraçado,
– Como
hástea pendente do cáctus em flor;
– Mimosa,
indolente, resvalo no prado, (deslize sobre o campo gramado)
– Como
um soluçado suspiro de amor! –
“Eu
amo a estatura flexível, ligeira,
Qual duma palmeira”,
Então me respondem; tu
és Marabá:
Quero antes o colo da
ema orgulhosa,
Que pisa vaidosa,
“Que
as flóreas campinas governa, onde está”.
– Meus
loiros cabelos em ondas se anelam,
– O
oiro mais puro tem seu fulgor;
– As
brisas nos bosques de os ver se enamoram,
– De
os ver tão formosos como um beija-flor!
–
Mas eles respondem:
“Teus longos cabelos,
São loiros, são
belos,
Mas são anelados; tu
és Marabá:
Quero antes cabelos,
bem lisos, corridos,
Cabelos compridos,
Não cor d’oiro fino,
nem cor d’anajá.”
E as doces palavras que
eu tinha cá dentro
A quem nas direi?
O ramo d’acácia na
fronte de um homem
Jamais cingirei:
Jamais
um guerreiro da minha arazóia (saia feita de penas usada por índias
brasileiras)
Me deprenderá:
Eu
vivo sozinha, chorando mesquinha (insignificante)
Que sou Marabá!
GONÇALVES
DIAS. Marabá.
In: Poemas. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo:
Publifolha, 1997, p. 138-140.
“Marabá”, segundo uma nota do próprio Gonçalves Dias (1823-1864, MA) sobre esse verbete, significa “mistura”. O poeta explica como encontrou o significado:
Encontramos na “Crônica da Companhia” um trecho que explica a significação desta palavra, e a idéia desta breve composição. “Tinha certa velha enterrado vivo um menino, filho de sua nora, no mesmo ponto em que o parira, por ser filho a que chamam ‘marabá’, que quer dizer mistura” (aborrecível entre essa gente) (DIAS, 1997, p. 186).
[…] filho do negociante português João Manuel Gonçalves Dias e de Vicência Mendes Ferreira, mestiça separada do marido: afirma-se que nas veias de Vicência corria sangue negro e de índio, donde julgarem alguns que também por esta circunstância, de ser o fruto do cruzamento das três raças básicas da nacionalidade, Gonçalves Dias pode ser considerado o poeta brasileiro por excelência. (Id., p. 9)
Gonçalves Dias, romancista cuja poesia dirigiu-se para o indianismo e o nacionalismo, foi vítima de um preconceito que ia muito além de uma questão étnica. As biografias contam que teve um pedido de casamento a Ana Amélia Ferreira Vale rejeitado por causa de sua origem mestiça, o que lhe deu inspiração para muitos de seus poemas sobre amores impossíveis, como “Se se Morre de Amor!” e “Ainda Uma vez – Adeus!”. Entretanto, Carneiro (2009) reconhece os riscos de se ter qualquer interpretação biográfica do autor a partir de suas obras, uma vez que Dias afirmou ter se inspirado em uma história encontrada na “Crônica da Companhia”. (DIAS, 1997, p. 186) Ainda assim, outros pesquisadores fizeram a mesma observação sobre sua obra.
O poema
O poema que faz parte da primeira fase do Romantismo brasileiro composto por onze estrofes (cinco sextetos e seis quartetos),[…] estrutura-se à semelhança de uma cantiga de amigo de tradição galego-portuguesa medieval, apresentando uma voz lírica feminina que canta seus infortúnios amorosos. Seu drama amoroso, no entanto, só aparentemente resume-se à sua condição de mulher rejeitada, só aparentemente é individual. Ao contrário, seu drama é, em essência, coletivo, pois mantém uma relação estreita entre o seu destino pessoal e o destino de sua coletividade, apontando para um problema que acomete a raça indígena como um todo: a miscigenação. Visto dessa forma, “Marabá” diferencia-se bastante de “Leito de folhas verdes” (outro poema de Gonçalves Dias), que, apesar de também apresentar um eu-lírico feminino que expõe suas queixas amorosas, não apresenta vínculos que unam sua questão pessoal a uma problemática maior de seu grupo. (OLIVEIRA, 2005, p. 41, parênteses inseridos).
O poema se organiza por repetições, ora sequenciadas, ora alternadas: “Tu és Marabá”. Apolinário (2014), assim como Navarro (1981) e Piteri (1991 apud Id.), destaca também que o poema, por causa monstruosidade que atribui à beleza física de Marabá, faz-nos lembrar a dor dos rejeitados, como Quasímodo, o corcunda francês de Victor Hugo.
“Não sou de Tupá?”
![]() |
Anajá (ou: inajá). Crédito: WebLaranja. |
O verso citado é pedido por aceitação. A índia parece acreditar que essa é uma condenação de Tupã (Deus). Negada por causa da origem híbrida, o eu lírico feminino lamenta a falta de um guerreiro ameríndio. A índia de cabelos loiros como “oiro mais puro” é descrita no poema como uma bela mulher (do ponto de vista europeu), mas que sempre esteve sozinha por não ser pura e, por causa disso, é rejeitada pela tribo e pelos guerreiros estando destinada à perpétua imácula nas duas últimas estrofes.
A beleza europeia da índia Marabá surge, nesse contexto, como uma deformidade física – uma das formas pelas quais a marginalização se manifesta na literatura romancista; a outra seria o teor melancólico. O quadro que segue explica, mediante a estrutura poética de Marabá, o padrão de beleza requerido pelos indígenas.
A beleza europeia da índia Marabá surge, nesse contexto, como uma deformidade física – uma das formas pelas quais a marginalização se manifesta na literatura romancista; a outra seria o teor melancólico. O quadro que segue explica, mediante a estrutura poética de Marabá, o padrão de beleza requerido pelos indígenas.
MARABÁ,
DE ACORDO COM O POEMA
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PARTES
DO CORPO
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COMO
MARABÁ SE DEFINE / “A DEFORMIDADE”
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COMO
OS ÍNDIOS DEFINEM A MULHER QUERIDA
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OLHOS
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Garços;
cor de safira; têm luz de estrelas e meigo brilhar; imitam as
nuvens do céu anilado e as cores das vagas do mar. (Primeiro
quarteto.)
|
Bem
pretos; luzentes; fulgentes; retintos; não cor de anajá.
(Segundo sexteto.)
|
ROSTO
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Alvo
como os lírios; da cor das areias batidas do mar; mais alvo e
brilhante que as aves mais brancas e as conchas mais puras.
(Segundo quarteto.)
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De
jambo corado; crestado do sol do deserto; não flor de cajá.
(Terceiro sexteto.)
|
COLO
|
Se
encurva engraçado, como a hástea pendente do cacto em flor.
(Terceiro quarteto.)
|
Como
o da ema orgulhosa, que pisa vaidosa, e governa as flóreas
campinas. (Quarto sexteto.)
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CABELOS
|
Loiros,
em ondas anelados; mais fulgorosos que o ouro mais puro;
irresistíveis às brisas dos bosques; formosos como um
beija-flor. (Quarto quarteto.)
|
Bem
lisos; corridos; compridos; não cor d’ouro fino, nem cor de
anajá. (Quinto sexteto.)
|
“Eis o cerne da discussão inserida no poema: a mestiçagem que deforma a beleza indígena em uma outra estranha a sua comunidade.” (APOLINÁRIO, 2014, p. 188) O autor explica também que a mestiçagem fora uma tentativa dos românticos de “promover uma literatura que fosse a expressão legítima da nação.” (Ibid.) O substantivo comum “marabá” funcionando como próprio, “Marabá”, passa, como um nome, a identificar o personagem que não pode ser identificada pela etnia miscigenada. (BRAGA, 2010 apud Ibid.)
Gonçalves Dias seria a Marabá?
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Gonçalves Dias. Fonte: Wikipédia.org. |
Qualquer tentativa de interpretação biográfica sobre Gonçalves Dias a partir de Marabá, assim como qualquer outro poema, é arriscada, pois, de certo modo, toma dele os direitos sobre a própria obra sentenciando-o à morte. (BARTHES, 2004) Ainda assim, saber da origem mestiça do filho do português resistente à independência do Brasil João Manuel Gonçalves Dias e da mestiça Vicência Mendes Ferreira (filha de negro e índio), torna o fator inspirador do poema Marabá revelado pelo romancista questionável. (GONÇALVES & FARIA, 2013)
Brasileiro por excelência, o poeta nos deixou um legado na história da Literatura no Brasil, pois, até então, nenhum outro escritor havia produzido algo puramente brasileiro. Na trajetória rumo à publicação de seus poemas, Dias usou de artifícios literários e políticos (contando com grande ajuda de amigos) até vir a ser o que tanto almejava: o primeiro poeta brasileiro. E assim conseguiu, tendo até mesmo versos do ilustre poema indianista Canção do Exílio inseridos no Hino Nacional do Brasil.
Se seus escritos trazem muito de suas próprias experiências enquanto mestiço em condições desfavoráveis, de qualquer forma, ele contribuiu (e permanece) para a proclamação de um país de traços únicos por denunciar a marginalização dos desfavorecidos e, ao mesmo tempo, anunciar a força e a coragem desta nação que ajudou a construir. Somos todos Marabás.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O Rumo da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
CARNEIRO, Alessandra da Silva. Figurações do Índio Romântico em Sousândrade e Gonçalves Dias. Eutomia, Revista Online de Literatura e Linguística. Ano II, N.º 2 – Dezembro de 2009.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 8. ed. Curitiba: Positivo, 2010.
GONÇALVES, Maria de Almeida; FARIA, Andréa Camila. Entre projetos literários e políticos: a literatura de Gonçalves Dias e a identidade brasileira. ISSN 2236-9228. III Simpósio de História do Maranhão Oitocentista: Impressos no Brasil do século XIX. 04 a 07 de junho de 2013, Universidade Estadual do Maranhão, São Luís.
GRIZOSTE, Weberson Fernandes. Gonçalves Dias e a Procura da Identidade Nacional Brasileira. Brasiliana – Journal for Brazilian Studies. Vol. 2, n. 2 (Nov 2013). ISSN 2245-4373, p. 371-400.
GONÇALVES DIAS, Antônio. Poemas. Seleção, introdução e notas de: Péricles Eugênio da Silva Ramos. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997. – (Biblioteca Folha; 15)
OLIVEIRA, Andrey Pereira de. A corrupção do universo indígena nas “Poesias Americanas” de Gonçalves Dias. Revista Trama, V. 1, N.º 2, 2.º semestre de 2005, p. 39-57.
ROTTA, Raquel Redondo; BAIRRÃO, José Francisco Miguel Henriques. Inscrições do feminino: literatura romântica e transe de caboclas na umbanda. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 336, setembro-dezembro/2007, p. 629-646.
SANCHES, Rafaela Mendes Mano. O indianismo sob a ótica de Gonçalves Dias e José de Alencar: Tradição ou ruptura? São José do Rio Preto: UNESP, 2009. Dissertação, 191 p.
Brasileiro por excelência, o poeta nos deixou um legado na história da Literatura no Brasil, pois, até então, nenhum outro escritor havia produzido algo puramente brasileiro. Na trajetória rumo à publicação de seus poemas, Dias usou de artifícios literários e políticos (contando com grande ajuda de amigos) até vir a ser o que tanto almejava: o primeiro poeta brasileiro. E assim conseguiu, tendo até mesmo versos do ilustre poema indianista Canção do Exílio inseridos no Hino Nacional do Brasil.
Se seus escritos trazem muito de suas próprias experiências enquanto mestiço em condições desfavoráveis, de qualquer forma, ele contribuiu (e permanece) para a proclamação de um país de traços únicos por denunciar a marginalização dos desfavorecidos e, ao mesmo tempo, anunciar a força e a coragem desta nação que ajudou a construir. Somos todos Marabás.
REFERÊNCIAS
APOLINÁRIO, Débora de Freitas Ramos. Marabá: estudos sobre a mestiçagem em Gonçalves Dias e Gregório de Matos e Guerra. Revista Litteris – ISSN: 19837429, n. 13 – março de 2014, p. 184-197.BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O Rumo da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
CARNEIRO, Alessandra da Silva. Figurações do Índio Romântico em Sousândrade e Gonçalves Dias. Eutomia, Revista Online de Literatura e Linguística. Ano II, N.º 2 – Dezembro de 2009.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 8. ed. Curitiba: Positivo, 2010.
GONÇALVES, Maria de Almeida; FARIA, Andréa Camila. Entre projetos literários e políticos: a literatura de Gonçalves Dias e a identidade brasileira. ISSN 2236-9228. III Simpósio de História do Maranhão Oitocentista: Impressos no Brasil do século XIX. 04 a 07 de junho de 2013, Universidade Estadual do Maranhão, São Luís.
GRIZOSTE, Weberson Fernandes. Gonçalves Dias e a Procura da Identidade Nacional Brasileira. Brasiliana – Journal for Brazilian Studies. Vol. 2, n. 2 (Nov 2013). ISSN 2245-4373, p. 371-400.
GONÇALVES DIAS, Antônio. Poemas. Seleção, introdução e notas de: Péricles Eugênio da Silva Ramos. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997. – (Biblioteca Folha; 15)
OLIVEIRA, Andrey Pereira de. A corrupção do universo indígena nas “Poesias Americanas” de Gonçalves Dias. Revista Trama, V. 1, N.º 2, 2.º semestre de 2005, p. 39-57.
ROTTA, Raquel Redondo; BAIRRÃO, José Francisco Miguel Henriques. Inscrições do feminino: literatura romântica e transe de caboclas na umbanda. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 336, setembro-dezembro/2007, p. 629-646.
SANCHES, Rafaela Mendes Mano. O indianismo sob a ótica de Gonçalves Dias e José de Alencar: Tradição ou ruptura? São José do Rio Preto: UNESP, 2009. Dissertação, 191 p.
Créditos de imagem
Anajá: WEB LARANJA. Frutas do Brasil: Inajá. Disponível em: http://www.weblaranja.com/cozinhando/frutasbr/index.php?view=detail&frutaId=34#.V70vU5grLIU. Acesso em: 21 mai. 2016, às 02:27.
Gonçalves Dias: WIKIPÉDIA. Gonçalves Dias. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gon%C3%A7alves_Dias. Acesso em: 21 mai. 2016, às 02:13.
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