Pular para o conteúdo principal

Marabá: uma breve análise entre o poema e a vida de Gonçalves Dias

MARABÁ

(Parênteses inseridos para esclarecimento de palavras e expressões)

Eu vivo sozinha; ninguém me procura!
Acaso feitura
Não sou de Tupá?
Se algum dentre os homens de mim não se esconde:
– “Tu és,” me responde,
Tu és Marabá!”

Meus olhos são garços, são cor das safiras,
Têm luz das estrelas, têm meigo brilhar;
Imitam as nuvens de um céu anilado,
As cores imitam das vagas do mar!

Se algum dos guerreiros não foge a meus passos:
Teus olhos são garços,”
Respondo anojado, mas és Marabá:
Quero antes uns olhos bem pretos, luzentes,
Uns olhos fulgentes,
Bem pretos, retintos, não cor d’anajá!” (claros)

É alvo meu rosto da alvura dos lírios,
Da cor das areias batidas do mar;
As aves mais brancas, as conchas mais puras
Não têm mais alvura, não têm mais brilhar. –

Se ainda me escuta meus agros delírios:
– “És alva de lírios”,
Sorrindo responde, mas és Marabá:
Quero antes um rosto de jambo corado,
Um rosto crestado
Do sol do deserto, não flor de cajá.”

Meu colo de leve se encurva engraçado,
Como hástea pendente do cáctus em flor;
Mimosa, indolente, resvalo no prado, (deslize sobre o campo gramado)
Como um soluçado suspiro de amor! –

Eu amo a estatura flexível, ligeira,
Qual duma palmeira”,
Então me respondem; tu és Marabá:
Quero antes o colo da ema orgulhosa,
Que pisa vaidosa,
Que as flóreas campinas governa, onde está”.

Meus loiros cabelos em ondas se anelam,
O oiro mais puro tem seu fulgor;
As brisas nos bosques de os ver se enamoram,
De os ver tão formosos como um beija-flor! –

Mas eles respondem: “Teus longos cabelos,
São loiros, são belos,
Mas são anelados; tu és Marabá:
Quero antes cabelos, bem lisos, corridos,
Cabelos compridos,
Não cor d’oiro fino, nem cor d’anajá.”

E as doces palavras que eu tinha cá dentro
A quem nas direi?
O ramo d’acácia na fronte de um homem
Jamais cingirei:

Jamais um guerreiro da minha arazóia (saia feita de penas usada por índias brasileiras)
Me deprenderá:
Eu vivo sozinha, chorando mesquinha (insignificante)
Que sou Marabá!

GONÇALVES DIAS. Marabá.
In: Poemas. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997, p. 138-140.


“Marabá”, segundo uma nota do próprio Gonçalves Dias (1823-1864, MA) sobre esse verbete, significa “mistura”. O poeta explica como encontrou o significado:
Encontramos na “Crônica da Companhia” um trecho que explica a significação desta palavra, e a idéia desta breve composição. “Tinha certa velha enterrado vivo um menino, filho de sua nora, no mesmo ponto em que o parira, por ser filho a que chamam ‘marabá’, que quer dizer mistura” (aborrecível entre essa gente) (DIAS, 1997, p. 186).
Na cultura indígena e literatura indianista, marabá (ou [do árabe]: mameluco) é alguém nasceu a partir da mistura de raças na qual um dos genitores é índio e outro não. A cultura indígena considerava esse filho “aborrecível” (Ibid.) e não podia permanecer na tribo, daí a crônica de Vasconcelos. Quando não condenado à morte após o nascimento, como narra a crônica, o que marcava a vida do marabá era a não aceitação na tribo por também ser branco (por exemplo) e a não aceitação na sociedade “civilizada” por também ser índio. É do que fala o poema de Gonçalves Dias que, de certo modo, também era marabá:
[…] filho do negociante português João Manuel Gonçalves Dias e de Vicência Mendes Ferreira, mestiça separada do marido: afirma-se que nas veias de Vicência corria sangue negro e de índio, donde julgarem alguns que também por esta circunstância, de ser o fruto do cruzamento das três raças básicas da nacionalidade, Gonçalves Dias pode ser considerado o poeta brasileiro por excelência. (Id., p. 9)
No poema, Marabá “é uma mestiça rejeitada pelos homens de sua tribo, porque tem um padrão de beleza mais europeizado, enquanto os índios preferem os encantos tidos como nacionais. Mesmo sendo bela, é infeliz por ser sozinha.” (ROTTA & BAIRRÃO, 2007, p. 638) Similarmente, retrata também a obra O Guarani (de José de Alencar), cujo personagem principal Isabel abandona a família materna por tratá-la de maneira inferior. Abandona também sua parte europeia, onde não é aceita. Em Inocência (de Visconde de Taunay), observamos “elementos comuns com as mulheres protagonistas dos romances indianistas, assim como traços que indicam indiretamente sua condição de mestiça. Sofre de amor romântico, desafia costumes e tradições e parece dividida entre família e paixão.” (Ibid.)

Gonçalves Dias, romancista cuja poesia dirigiu-se para o indianismo e o nacionalismo, foi vítima de um preconceito que ia muito além de uma questão étnica. As biografias contam que teve um pedido de casamento a Ana Amélia Ferreira Vale rejeitado por causa de sua origem mestiça, o que lhe deu inspiração para muitos de seus poemas sobre amores impossíveis, como “Se se Morre de Amor!” e “Ainda Uma vez – Adeus!”. Entretanto, Carneiro (2009) reconhece os riscos de se ter qualquer interpretação biográfica do autor a partir de suas obras, uma vez que Dias afirmou ter se inspirado em uma história encontrada na “Crônica da Companhia”. (DIAS, 1997, p. 186) Ainda assim, outros pesquisadores fizeram a mesma observação sobre sua obra.

O poema

O poema que faz parte da primeira fase do Romantismo brasileiro composto por onze estrofes (cinco sextetos e seis quartetos),
[…] estrutura-se à semelhança de uma cantiga de amigo de tradição galego-portuguesa medieval, apresentando uma voz lírica feminina que canta seus infortúnios amorosos. Seu drama amoroso, no entanto, só aparentemente resume-se à sua condição de mulher rejeitada, só aparentemente é individual. Ao contrário, seu drama é, em essência, coletivo, pois mantém uma relação estreita entre o seu destino pessoal e o destino de sua coletividade, apontando para um problema que acomete a raça indígena como um todo: a miscigenação. Visto dessa forma, “Marabá” diferencia-se bastante de “Leito de folhas verdes” (outro poema de Gonçalves Dias), que, apesar de também apresentar um eu-lírico feminino que expõe suas queixas amorosas, não apresenta vínculos que unam sua questão pessoal a uma problemática maior de seu grupo. (OLIVEIRA, 2005, p. 41, parênteses inseridos).
Sanches (2009, p. 92) afirma ainda: “[…] o efeito melancólico alcançado em seus poemas não é fruto da convenção da época, mas, pelo contrário, é fruto de sua visão particular, expressa por meio de seu caminho difícil e árduo enquanto poeta e cidadão.” Outro tema de destaque na obra de Dias é o da marginalização manifestada através da deformação física, tal qual faz o romancista francês Victor Hugo (1802-1885) em O Corcunda de Notre Dame. (NAVARRO, 1981; PITERI, 1991 apud SANCHES, 2009)

O poema se organiza por repetições, ora sequenciadas, ora alternadas: “Tu és Marabá”. Apolinário (2014), assim como Navarro (1981) e Piteri (1991 apud Id.), destaca também que o poema, por causa monstruosidade que atribui à beleza física de Marabá, faz-nos lembrar a dor dos rejeitados, como Quasímodo, o corcunda francês de Victor Hugo.

“Não sou de Tupá?”

Anajá (ou: inajá).
Crédito: WebLaranja.
O verso citado é pedido por aceitação. A índia parece acreditar que essa é uma condenação de Tupã (Deus). Negada por causa da origem híbrida, o eu lírico feminino lamenta a falta de um guerreiro ameríndio. A índia de cabelos loiros como “oiro mais puro” é descrita no poema como uma bela mulher (do ponto de vista europeu), mas que sempre esteve sozinha por não ser pura e, por causa disso, é rejeitada pela tribo e pelos guerreiros estando destinada à perpétua imácula nas duas últimas estrofes.

A beleza europeia da índia Marabá surge, nesse contexto, como uma deformidade física – uma das formas pelas quais a marginalização se manifesta na literatura romancista; a outra seria o teor melancólico. O quadro que segue explica, mediante a estrutura poética de Marabá, o padrão de beleza requerido pelos indígenas.
MARABÁ, DE ACORDO COM O POEMA
PARTES DO CORPO
COMO MARABÁ SE DEFINE / “A DEFORMIDADE”
COMO OS ÍNDIOS DEFINEM A MULHER QUERIDA
OLHOS
Garços; cor de safira; têm luz de estrelas e meigo brilhar; imitam as nuvens do céu anilado e as cores das vagas do mar. (Primeiro quarteto.)
Bem pretos; luzentes; fulgentes; retintos; não cor de anajá. (Segundo sexteto.)
ROSTO
Alvo como os lírios; da cor das areias batidas do mar; mais alvo e brilhante que as aves mais brancas e as conchas mais puras. (Segundo quarteto.)
De jambo corado; crestado do sol do deserto; não flor de cajá. (Terceiro sexteto.)
COLO
Se encurva engraçado, como a hástea pendente do cacto em flor. (Terceiro quarteto.)
Como o da ema orgulhosa, que pisa vaidosa, e governa as flóreas campinas. (Quarto sexteto.)
CABELOS
Loiros, em ondas anelados; mais fulgorosos que o ouro mais puro; irresistíveis às brisas dos bosques; formosos como um beija-flor. (Quarto quarteto.)
Bem lisos; corridos; compridos; não cor d’ouro fino, nem cor de anajá. (Quinto sexteto.)

“Eis o cerne da discussão inserida no poema: a mestiçagem que deforma a beleza indígena em uma outra estranha a sua comunidade.” (APOLINÁRIO, 2014, p. 188) O autor explica também que a mestiçagem fora uma tentativa dos românticos de “promover uma literatura que fosse a expressão legítima da nação.” (Ibid.) O substantivo comum “marabá” funcionando como próprio, “Marabá”, passa, como um nome, a identificar o personagem que não pode ser identificada pela etnia miscigenada. (BRAGA, 2010 apud Ibid.)

Gonçalves Dias seria a Marabá?

Gonçalves Dias.
Fonte: Wikipédia.org.
Qualquer tentativa de interpretação biográfica sobre Gonçalves Dias a partir de Marabá, assim como qualquer outro poema, é arriscada, pois, de certo modo, toma dele os direitos sobre a própria obra sentenciando-o à morte. (BARTHES, 2004) Ainda assim, saber da origem mestiça do filho do português resistente à independência do Brasil João Manuel Gonçalves Dias e da mestiça Vicência Mendes Ferreira (filha de negro e índio), torna o fator inspirador do poema Marabá revelado pelo romancista questionável. (GONÇALVES & FARIA, 2013)

Brasileiro por excelência, o poeta nos deixou um legado na história da Literatura no Brasil, pois, até então, nenhum outro escritor havia produzido algo puramente brasileiro. Na trajetória rumo à publicação de seus poemas, Dias usou de artifícios literários e políticos (contando com grande ajuda de amigos) até vir a ser o que tanto almejava: o primeiro poeta brasileiro. E assim conseguiu, tendo até mesmo versos do ilustre poema indianista Canção do Exílio inseridos no Hino Nacional do Brasil.

Se seus escritos trazem muito de suas próprias experiências enquanto mestiço em condições desfavoráveis, de qualquer forma, ele contribuiu (e permanece) para a proclamação de um país de traços únicos por denunciar a marginalização dos desfavorecidos e, ao mesmo tempo, anunciar a força e a coragem desta nação que ajudou a construir. Somos todos Marabás.

REFERÊNCIAS

APOLINÁRIO, Débora de Freitas Ramos. Marabá: estudos sobre a mestiçagem em Gonçalves Dias e Gregório de Matos e Guerra. Revista Litteris – ISSN: 19837429, n. 13 – março de 2014, p. 184-197.
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: O Rumo da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.
CARNEIRO, Alessandra da Silva. Figurações do Índio Romântico em Sousândrade e Gonçalves Dias. Eutomia, Revista Online de Literatura e Linguística. Ano II, N.º 2 – Dezembro de 2009.
FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Mini Aurélio: o dicionário da língua portuguesa. 8. ed. Curitiba: Positivo, 2010.
GONÇALVES, Maria de Almeida; FARIA, Andréa Camila. Entre projetos literários e políticos: a literatura de Gonçalves Dias e a identidade brasileira. ISSN 2236-9228. III Simpósio de História do Maranhão Oitocentista: Impressos no Brasil do século XIX. 04 a 07 de junho de 2013, Universidade Estadual do Maranhão, São Luís.
GRIZOSTE, Weberson Fernandes. Gonçalves Dias e a Procura da Identidade Nacional Brasileira. Brasiliana – Journal for Brazilian Studies. Vol. 2, n. 2 (Nov 2013). ISSN 2245-4373, p. 371-400.
GONÇALVES DIAS, Antônio. Poemas. Seleção, introdução e notas de: Péricles Eugênio da Silva Ramos. Rio de Janeiro: Ediouro; São Paulo: Publifolha, 1997. – (Biblioteca Folha; 15)
OLIVEIRA, Andrey Pereira de. A corrupção do universo indígena nas “Poesias Americanas” de Gonçalves Dias. Revista Trama, V. 1, N.º 2, 2.º semestre de 2005, p. 39-57.
ROTTA, Raquel Redondo; BAIRRÃO, José Francisco Miguel Henriques. Inscrições do feminino: literatura romântica e transe de caboclas na umbanda. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 15(3): 336, setembro-dezembro/2007, p. 629-646.
SANCHES, Rafaela Mendes Mano. O indianismo sob a ótica de Gonçalves Dias e José de Alencar: Tradição ou ruptura? São José do Rio Preto: UNESP, 2009. Dissertação, 191 p. 

Créditos de imagem

Anajá: WEB LARANJA. Frutas do Brasil: Inajá. Disponível em: http://www.weblaranja.com/cozinhando/frutasbr/index.php?view=detail&frutaId=34#.V70vU5grLIU. Acesso em: 21 mai. 2016, às 02:27.
Gonçalves Dias: WIKIPÉDIA. Gonçalves Dias. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Gon%C3%A7alves_Dias. Acesso em: 21 mai. 2016, às 02:13.

Comentários

As mais lidas:

Analisando o discurso do poema "Eu", de Álvaro de Campos

"Fernando Pessoa" por S.A. e Maria José de Lencastre. Antes de tudo: Análise do Discurso é “[…] o estudo da língua sob a perspectiva discursiva” (BRANDÃO, 2009, p. 5). Para Foucault (1972 apud FAIRCLOUGH, 2001, p. 64), “a análise do discurso [está] voltada para a análise de enunciados”, que é considerada uma forma de analisar desempenhos verbais e “diz respeito não à especificação das frases que são possíveis ou gramaticais, mas à especificação sociohistoricamente variável de formações discursivas (algumas vezes referidas como discursos), sistemas de regras que tornam possível a ocorrência de certos enunciados, e não outros, em determinados tempos, lugares e localizações institucionais.” (colchetes inseridos)

Quais são as características de um texto literário?

Com a honrosa coautoria de: Ermírio Simões Batista Segundo Proença Filho (2007), em sua obra A linguagem literária , as características do discurso literário são as seguintes: 1. Complexidade Num texto complexo pode-se identificar metonímias sobre a vida humana. No caso, seriam situações que ocorrem nas relações interpessoais. Assim observa-se uma série de fatores que contribuem para o enriquecimento do texto e o aumento de plurissignificação, exigindo maior esforço por parte do leitor. No texto literário não existe o óbvio. me.to.ní.mi.a s.f. [retórica] Figura de linguagem em que um objeto é designado por uma palavra que se refere a outro, por existir uma relação entre os dois. Quando se “acende a luz”, na verdade se aperta um botão, fechando um circuito elétrico e produzindo luz. Mas se dá o nome do efeito à causa. (7GRAUS, 2017, adaptado) 2. Multissignificação O texto multissignificativo depreende diversos significados que dependerá do