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Diário de Bordo #3 | O tradutor é mesmo invisível?

“Tradutor invisível” é aquele que permite ao leitor Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774) como se ele estivesse lendo o próprio Johann Wolfgang von Goethe, como se a obra original tivesse sido escrita em português do Brasil. É o que propõe o conto Pierre Menard – Autor do Quixote (1939), do escritor Jorge Luis Borges (1899, Buenos Aires – 1986, Genebra). No conto, Pierre Menard não quer reproduzir um Dom Quixote em sua tradução, mas transpor o Quixote original para o seu trabalho (ARROJO, 2007). Para isso, o tradutor precisa se revestir da personalidade de Miguel de Cervantes (1547, Alcalá de Henares/ESP – 1616, Madrid) para que alcance uma tradução com (relativa) fidelidade. (SILVA & SANTOS, 2017, p. 4)

Inevitavelmente, o tradutor sempre será uma entidade visível ao leitor de obras literárias; ele é a divindade criadora revelada aos homens através de sua própria (re)criação. O ofício tradutório, assim como tudo o que rege a existência humana, é norteado por princípios que orientam (ou regulam) e que variam desde a dicotomia sentido versus forma e fidelidade ao texto original (se é que a tradução não pode ser original) à adição e/ou omissão cujas escolhas entre SIM e NÃO estão relacionadas ao público receptor, ao contratante ou editora ou ao próprio tradutor, entre outros fatores (que podem ser, inclusive, ideológicos).

O tradutor pode se tornar manifesto de diversas formas. Um nome impresso na capa de uma tradução ou mesmo que apenas na ficha catalográfica já é o suficiente para que ele seja revelado. Em certos casos, há uma pequena biografia do tradutor ao final da obra ou mesmo nas orelhas. Mas o que importa aqui, ao menos para o leitor mais atento para as questões tradutórias, não é meramente o nome Tradutor A ou Tradutor B, mas as suas digitais (ou identidade tradutória), por assim dizer, que são gravadas no resultado final de sua tradução.

Por questões ditas teológicas, certa tradução moderna da Bíblia prefere não revelar o nome de seus tradutores desde que foi lançada sua primeira edição em inglês na década de 1950, mas seu texto é amplamente reconhecido pelas peculiaridades de suas escolhas tradutórias que contrariam as convenções da igreja. (v. nota) Escolhas estas que se justificam através de extensas notas de rodapé e apêndices que discorrem sobre técnicas e princípios de tradução, questões linguísticas dos textos originais (hebraico antigo, aramaico e grego koiné), informações históricas, além de outros estudos oriundos da academia etc. Entre boas e não tão boas críticas que recebe de estudiosos no mundo todo, é assim que seus tradutores são revelados: pelo mérito (ou não) do resultado final de seu trabalho.

Particularmente, eu prefiro o nome impresso ao menos na ficha catalográfica porque tradução dá um trabalho… Então tradutor tem que ser visto, tem que ser visível!

O leitor atento buscará no texto o quão próximo a tradução está do original, caso o conheça, ou quão elevada foi a criatividade tradutória. Sem o domínio da língua de saída, o leitor analisará a leveza e a fluência do texto na língua de chegada ou também o estilo conforme seus conhecimentos acerca dos gêneros e dos movimentos literários, por exemplo.

Um tradutor pode se tornar visível pelo louvor ou pelo declínio de seu ofício. Uma tradução malsucedida distancia da realidade e é tachada como “ruim” ao passo que uma tradução relativamente boa será enaltecida por ter cumprido o seu papel de “entregar” a obra na língua de chegada. É quando o tradutor alcança a chance de, enfim, receber algum destaque em meio a tantos: “Nossa! Este autor é realmente incrível!” ■

Referências: Oficina de tradução, de Rosemary Arrojo (5. ed., Ática, 2007), e o artigo Tradução literária: um ofício de (in)visibilidade, de Márcia Modesto e Wendell Santos (Anais do Viva a Pernambucanidade Viva XVI, FAFIRE, 2017).

Nota: A tradução a que me refiro é a Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada (NM) (Sociedade Torre de Vigia, 2015), lançada em português em 1967. Em 1986, a NM recebeu uma revisão que trouxe correções no texto e, em 2015, atualizações oriundas de novas pesquisas acerca dos manuscritos originais, mas também apresentou uma notável modernização da linguagem. A NM é publicada gratuitamente pelas Testemunhas de Jeová e “já foi publicada, inteira ou em parte, em mais de 210 idiomas. Foram produzidos mais de 240 milhões de exemplares dessa tradução.” (fonte: site jw.org)


Texto originalmente publicado em 7 mai. 2018, atualizado no LinkedIn em 13 mai. 2022 e, posteriormente, atualizado neste blog em 25 fev. 2023.

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