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A palavra “deus” deve ser escrita com inicial maiúscula?

God Blessing the Seventh Day, by William Blake
 
Não há um absolutismo de regra se analisarmos o sentido com que as duas grafias costumam ser empregadas pela maioria dos usuários da língua portuguesa. O uso da inicial maiúscula ou minúscula é relativo, a decisão cabe a quem escreve e sua escolha estará sempre em consonância com a percepção daquilo que o usuário da língua concebe como “deus” com inicial maiúscula e “deus” com inicial minúscula. Esta é uma questão que pode ser melhor discutida através de uma análise discursiva, linha de estudo em linguística que analisa a língua do ponto de vista discursivo (para além do texto).
Há várias situações nas quais o usuário poderá optar por “deus” com inicial maiúscula ou “deus” com inicial minúscula. Duas delas são suficientes para exemplificarmos as diferenças de uso.
 
Cristãos e judeus 
 
Cristãos e judeus escrevem “deus” com inicial maiúscula para o deus de Israel, a quem reconhecem como autor da Bíblia e da Torá, e “deus” com inicial minúscula para outras deidades, geralmente de outros ritos e religiões que consideram “pagãs” por acreditarem que existe apenas um deus verdadeiro e que os demais são criações do homem; esta é uma ideia que está presente tanto na Bíblia (escrita em hebraico antigo, aramaico e grego) quanto na Torá (Antigo Testamento da Bíblia) e que é, naturalmente, reproduzida por aqueles que reconhecem estes escritos como “a palavra de Deus” dirigida aos homens.
Quando os escritos sagrados se referem a deuses como Baal, Dagom, Zeus, Hermes, Ártemis e outros, os tradutores optam pela inicial minúscula. Quando se referem ao personagem central dos escritos, o deus de Israel, a inicial é sempre maiúscula. Contudo, o hebraico, língua na qual maior parte da Bíblia e da Torá foram escritas, não inclui letras maiúsculas ou minúsculas, de modo que, independente de qual seja o deus a quem o escritor sagrado se refere, em hebraico, a escrita é sempre a mesma (Deus/deus: אֱלֹהִים, ʼelo·hím).
O nome designativo do deus de Israel é geralmente traduzido ao português por Jeová ou Javé, cuja escrita original é יהוה (transliterado: YHWH), e, de acordo com a Gramática Normativa da língua portuguesa, a inicial maiúscula é obrigatória para estes nomes (Jeová, Javé, Yhwh, Jhvh, Yahweh, Iavé etc., assim como Obatalá, Brahma etc.) por se tratarem de nomes próprios, não de títulos/tributos como “deus”, “senhor” ou “soberano”, entre outros. Mas havemos de nos lembrar de que a inicial maiúscula também é obrigatória para início de frases.
Algo semelhante ocorre com a palavra “cristo” (gr.: khri·stós), que, assim como “messias” (heb.: ma·shí·ahh), significa “ungido” ou “designado”. Tanto em hebraico quanto em grego, estas palavras podem ser aplicadas a qualquer pessoa que recebe determinadas delegações, designações. Nas traduções para línguas como português, inglês, espanhol e outras que dispõem de letras maiúsculas e minúsculas, a inicial maiúscula é aplicada a Jesus sob a premissa de que ele é o filho do deus soberano ou o próprio deus em forma de homem, o que revela o posicionamento religioso do tradutor cristão ou do público para quem ele traduz ou a ideologia daquele para quem ele presta o serviço de tradução. O nome Jesus, assim como os outros citados anteriormente, obrigatoriamente, deve ter inicial maiúscula, ao passo que “cristo” é opcional assim como “deus”.
 
Hindus
 
Hindus podem escrever “deus” com inicial maiúscula para todos os seus deuses (Shiva, Ganesha, Brahma etc.), pois creem que todos eles são verdadeiros, e “deus” com inicial minúscula para o deus cristão por não acreditarem que ele seja o deus verdadeiro, soberano. Brahma é o deus soberano dos hindus. Em contrapartida, os cristãos escreverão com inicial minúscula para os deuses hindus, incluindo Brahma.
 
Outros casos
 
Outros podem escrever “deus” com inicial maiúscula em todo e qualquer caso, independente da fé que confessa, por reconhecerem que há quem acredite na divindade de todos esses deuses.
Existem aqueles que escrevem “deus” com inicial minúscula em todos os casos, como neste comentário, por preferirem não revelar o que concebe como sendo “deus” com inicial maiúscula e “deus” com inicial minúscula, para serem neutros, imparciais. Em certo artigo no qual discorri sobre a história e as técnicas de tradução literária, precisei citar alguns mitos sobre a origem das línguas, dentre os quais mencionei a Torre de Babel e, ao citar o grande causador da confusão de línguas, usei o nome Yahweh com inicial maiúscula, mas a palavra “deus” com inicial minúscula. (MODESTO & SANTOS, 2017)
Também existem os ateus e pessoas sem religião, que não têm regra quanto a isso ou seguem à risca a Gramática Normativa. Em suma, tal dicotomia é uma questão ideológica que hierarquiza as religiões no mundo numa postura em que o usuário da língua reivindica para si a verdade, ao passo que a gramática não é religiosa, mas normativa.

 
NÃO HÁ INICIAL MAIÚSCULA, APENAS A IDEIA DE UM SER SOBERANO 
 
A palavra ٱلل (árabe; transliterado: allāh, aportuguesado: alá) significa “deus” e assim também falam judeus e cristãos em países de língua árabe, não apenas muçulmanos. Veja o texto de Gênesis 1:1 em língua árabe:

فِي ٱلْبَدْءِ خَلَقَ ٱللهُ ٱلسَّمٰوَاتِ وَٱلْأَرْضَ. – التكوين ١‏‏:‏١‏‏.
 
 
Gênesis 1:1 em hebraico é assim:

.בְּרֵאשִׁית בָּרָא אֱלֹהִים אֵת הַשָּׁמַיִם וְאֵת הָאָרֶץ. – בראשית 1:1
 
 Em determinados contextos, as palavras “alá” (entre os muçulmanos, por exemplo) e “olorum” (entre os candomblecistas, por exemplo) são utilizados como nomes próprios, não apenas como sinônimos do termo “deus” enquanto título/tributo. Quando isso ocorre, a língua escrita deve seguir o que dita a Gramática Normativa para nomes de pessoas: inicial maiúscula (Alá, Olorum).
 
Referências

BÍBLIA. Português brasileiro. Nova Bíblia Pastoral. Brasília: Paulus, 2014.
SILVA, Márcia Maria Modesto da; SANTOS, Wendell Batista dos. Tradução literária: um ofício de (in)visibilidade. Anais do Viva a Pernambucanidade Viva XVI: identidade, alteridade e cidadania. Evento anual do Curso de Letras da Fafire, Recife, PE, 28 e 29 de outubro de 2016. Organização: Liliane Maria Jamir e Silva; Edilza de Moura; Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira; Dulce Porto Rodrigues. Recife, Fafire: Curso de Letras, 2017. On-line em: www.publicacoes.fafire.br.
WATCH TOWER BIBLE AND TRACT SOCIETY OF PENNSYLVANIA. Árabe. Gênesis. In: Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada. JW.ORG, 2018. Disponível em: <https://www.jw.org/pt/publicacoes/biblia/nwt/livros/G%C3%Aanesis/1/>. Acesso em: 13 jan. 2018, às 19:00.
WATCH TOWER BIBLE AND TRACT SOCIETY OF PENNSYLVANIA. Hebraico. Gênesis. In: Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada. Biblioteca On-line da Torre de Vigia, 2018. Disponível em: <https://wol.jw.org/he/wol/b/r145/lp-q/sbi1/Q/2012/1/1#study=discover>. Acesso em: 13 jan. 2018, às 19:04.

Atualizado pela última vez em: 24 fev. 2023.

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