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Saírão raízes dos nossos pés




Quando todos formos velhos, quando todos nos arrastarmos, então sairão raízes de nossos pés e seremos as grandes árvores do Paraíso (na Terra).

Itamaracá, alguma data entre 2014/15, mas com gostinho de abril.
 
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SEMPRE TIVE VONTADE de ignorar mais que completamente as pessoas, mas houve um tempo em que eu achava isso um absurdo, pois eu era criança…
Fim de tarde. Brisa. Calçada baixa. Rua pouco movimentada. Sentado. Na calçada. Encolhido em minhas pernas magras e a mente num mundo muito longe daqui. Um senhor doze vezes mais velho do que eu se arrastando e apoiando-se em sua bengala luxuosa e um chapéu na cabeça do tipo que os italianos gostam de usar.
– Pensando na vida, meu filho?
− Qual a pessoa que não pensa na vida, senhor? − Apenas pensei e da mesma forma que se achegara, arrastou as pernas para ir embora de mim subindo a rua e sorrindo tanto quanto eu com as linhas que desenhavam o seu corpo esculpido pelo tempo.

Digressão: Depois que Tempo se apartara de Amor, ele se encarregou de encurtar-se na vida de umas pessoas e a desenhar sobre os corpos de outras. Tem a habilidade de multiplicar facilmente as suas marcas sobre os corpos dos homens. E é o que, de fato, faz.

Achei engraçado. Fiquei me perguntando como ele poderia ser tão velho e ainda conseguir falar e andar, mesmo que se arrastando. “Será que tem mãe? Será que vai um dia sair raízes dos seus pés e então virar uma árvore que vai crescer ainda mais e ficar tão gigante quanto os outros gigantes que na terra podem existir? Antigamente ele era como eu, então eu vou ser como ele quando ficar velho também e, então, ele já será uma grande árvore. Eu não quero ficar assim e, muito menos, virar uma árvore.” Fiquei a pensar.
Depois que cresci, alguém me falou de certas mitologias e correntes na literatura que associam árvores a velhice e sabedoria. A vida é tão injusta que faz a gente se acostumar a ser de uma forma para depois abandonar aquela forma e assumir uma outra um tanto exótica e enrugada. Riscada pelos dias como numa metamorfose.
Fim de tarde. Brisa. Calçada baixa. Rua pouco movimentada. Sentado. Na calçada. Encolhido em minhas pernas magras e a mente voltada novamente para um mundo muito longe daqui.
− Meu filho, sentado desse jeito, a vizinhança pensa que você não tem mãe nem pai, mesmo estando bem vestido. Hoje em dia, mendigos também se vestem, meu filho!
− Eu estou bem, mãe.
− Se ajeite, saia daí.
− Os humanos são tão bobos, não é? Precisam ver como de fato são as coisas do mundo antes de falar qualquer coisa. Só precisam. − Corrigi a postura sentando-me num banco ao lado para ver a noite chegar. A minha mãe entrou com a cara de quem não gostou da resposta ou talvez não tenha entendido o meu comunicado.
Aquela rua quase morta fazia-me transportar a mente para um mundo distante e indefinido. Não existe mais outra rua como aquela, pelas grandes histórias que ela talvez tenha para nos contar. Ai, se as pedras ali falassem… Falariam um pouco de mim.
Esqueci, pois sou falho de memória, de contar que vivi três anos no Poço da Panela, na Xavier de Andrade, em uma casa que agora vive de festas, numa época que ainda era possível sentar-se à calçada para ver as folhas caírem sobre o nosso colo e as borboletas voarem em volta de nossas madeixas.
Foi lá que vi o velho passar e chamei a minha mãe de boba quando sentado na calçada (o padre me me fez rezar três Ave Maria e dois Pai Nosso por causa disso). Eu havia discordado da mudança até que conheci a casa onde iríamos morar. Os melhores anos da minha vida.
Naquele tempo, os meus sonhos eram menos perturbadores. Realmente não tenho grandes recordações da Xavier de Andrade, mas aqui está o pouco do que posso lembrar, pois falar muito tira o gosto da história e a Xavier possui um gosto de mistério.
Tinha acabado de completar oito anos. Meus pais tiveram vida de nômades por alguns anos e fora apenas aos oito anos que vim a entender o motivo que levam as pessoas a se mudarem de casa, rua, bairro, cidade e até país. Foi neste mesmo tempo que comecei a fazer perguntas mais sensatas sobre a vida e concluí que, magicamente, mudamos de estado também.
Eu já perguntava sobre por quê vivíamos e o que levava a morte natural enquanto meus primos ainda perguntavam por quê que o céu era azul e tinham medo do escuro. No meu aniversário de nove anos (1999), ganhei um encontro com meus primos – imagine a Xavier de Andrade desse tamanho para tanta cria. Desde que os vi bobos perguntando sobre a cor do céu quando ouviram “Pais e Filhos” na radiola que minha mãe herdou do pai, tive pena e decidi que um dia os presentearia com uma explicação sensata, já que minhas tias apenas respondiam com outra música: “Foi Deus quem quis assim.” Um ano depois, expliquei-lhes ao pedir licença para dar uma palavra batendo com um garfo de prata em uma taça de vinho que mamãe acabara de tomar e subindo em um banco de madeira próximo à mesa que colocaram sob uma árvore no quintal:
− Quando a luz do sol entra na atmosfera terrestre, as moléculas de ar refletem, absorvem e espalham sua radiação. A luz do sol é composta por sete cores que vão do violeta ao vermelho. A luz, ou a cor, azul é a que mais se dispersa na atmosfera através das moléculas de ar, sendo capaz de movimentar os elétrons das camadas atômicas das moléculas com mais facilidade do que a vermelha, por exemplo. A luz azul é a que mais está dispersa na atmosfera quando vocês estão olhando para o alto e veem tudo azul.
O céu já não seria mais azul por que Deus queria, mas por que as moléculas desejaram fazer assim. Ninguém entendeu o que falei, mas respeitei o silêncio com o silêncio. Depois, os meus primos ficaram com medo de olhar de novo para o céu, minha tia protestante disse que aquilo não era de Deus, a espírita disse que era um prodígio e para os demais, católicos não estavam nem aí. Os meus tios? Ah, eles disseram assim:
− É de Deus, meu sobrinho.
− É de Deus. − Sem nada terem compreendido.
Aos 18 anos, retornei à Xavier de Andrade e, sentado sob a sombra duma outra grande árvore, percebi que lágrimas caíam sobre mim.
− Porque choras, grande árvore?
− Estou cansada.
− Árvores se cansam?
− Você não sabia que as árvores também podiam chorar e nem cansar, não era?
− Do que se cansa?
− Estou cansada de todos os cansaços do mundo. Estou cansada vida. Estou cansada das dores. Árvores também podem cansar.
E suspirou. Descansou eternamente sob a minha vista ainda pequenina. Nunca mais encontrei uma árvore que pudesse chorar. Talvez, aquela árvore fosse um pouco de gente também. Talvez, o homem velho da Xavier de Andrade, subindo a rua cansado, ali tenha virado uma árvore e, então, chorou também pelos cansaços do mundo. Álvaro não poderia reclamar. Padeceu. E se mudou.

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