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Auto da Compadecida: da Idade Média à Paraíba hoje, um picadeiro que atravessa gerações

Por: Aline Maelly & Wendell Santos

Ariano Suassuna
Foto: Wilson Dias/ABr - Agência Brasil,
CC BY 3.0 br, Wikipédia.
AUTO DA COMPADECIDA, obra mais conhecida de Ariano Suassuna (1927-2014), veio ao público em 1955 para ser levada, em 11 de setembro de 1956, ao Teatro de Santa Isabel (Recife, PE) e, em 1957, ao Rio de Janeiro pelo Teatro Adolescente do Recife no Primeiro Festival de Amadores Nacionais. Dirigida por Clênio Wanderley, nas palavras de Henrique Oscar (apud SUASSUNA, 2004), este foi “O grande acontecimento” do Festival.

“Os dramaturgos populares têm mentalidade coletiva; gostam de recorrer a um repertório de motivos (i.e., assuntos) que compartilham com seu público.” (TAVARES, 2014, p. 181, parênteses inseridos) Segundo o autor da peça, a obra tem inspiração nas histórias e romances populares do Nordeste. (OSCAR apud SUASSUNA, 2004) De fato, alguns episódios da peça podem têm suas fontes em folhetos como O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), História do cavalo que defecava dinheiro (João Martins de Athayde) e O castigo da Soberba (anônimo), histórias que são também reproduzidas por Leonardo Mota na obra Violeiros do Norte (1925), com participação do cantador Anselmo Vieira de Sousa (1867-1926). (TAVARES, 2014; DAGUERRE, 2005)

Na verdade, encontra-se em Auto da Compadecida (originalmente, A Compadecida) elementos de uma época ainda mais remota e de lugares bem distintos, como a
tradição das peças da Alta Idade Média, geralmente designadas como Os Milagres de Nossa Senhora (do séc. XVI), em que, numa história mais ou menos – e às vezes muito – profana, o herói em dificuldade apela para Nossa Senhora, que comparece e o salva, tanto no plano espiritual com atemporal. (OSCAR apud SUASSUNA, 2004, p. 9, 10)
Quanto à forma, é inevitável não aproximarmos a obra de Ariano Suassuna aos autos de Gil Vicente e ao teatro ibérico do séc. XVII. Segundo Daguerre (2005), as fontes matriarcais de Auto da Compadecida remontam ao teatro medieval através de personagens arquétipos* (veja notas de fim) presentes no imaginário popular nordestino. Como exemplo, cita Peleja da alma, do cantador paraibano Silvino Pirauá, cantiga na qual um homem morre e sua alma vai ao céu para ser julgada.
Lá chegando, é condenada ao inferno por Jesus, devido a sua conduta pouco cristã na Terra. A alma, então, pede ajuda a São Miguel e a Nossa Senhora, a Compadecida. (Id., p. 79)
Também é possível encontrar algo em comum com a commedia dell’arte, principalmente em João Grilo, que lembra as características do arlequim.* (Id.; OSCAR apud SUASSUNA, 2004; TAVARES apud SUASSUNA, 2014)

Na tradição, a dupla de personagens enganador/enganado caracteriza-se pela opressão dos mais abastados sobre aqueles socialmente vulneráveis que, aproveitando-se da avareza de seus senhores, usam de esperteza para poder sobreviver. Em Auto da Compadecida, João Grilo oferece ao padeiro e sua esposa, seus patrões, um “gato que descome dinheiro”, episódio inspirado na obra já citada de João Martins de Athayde. O maior investimento e inovação que Ariano Suassuna talvez tenha feito no personagem enganador de sua obra pode ter sido a de duplicá-lo trazendo a João Grilo um amigo e companheiro de espertezas – Chicó, inspirado numa figura real que Suassuna conhecera em Taperoá. (TAVARES, 2014)

João Grilo, uma nova encarnação de Pedro Malazarte, Pedro Urdemalas e Lazarillo de Tormes, entre outros (Id.), se baseia no pícaro (o astuto, ardiloso) da tradição ibérica e reflete, por isso, um aspecto da tradição popular tanto de Portugal e Espanha como do nordeste brasileiro. Ele “vence o patrão pela burla e pela astúcia. Assim o poder se subverte e surge o cômico, o satírico, a vingança do povo contra quem o oprime”, afirma Lyvia Petry Jahn (2008, p. 24) em seu trabalho de conclusão de curso para a graduação em Letras e Literatura Portuguesa (UFRS). O “amarelo” junto aos personagens de Cristo e da Compadecida, é responsável por desvendar a verdade sobre cada um dos demais indivíduos no julgamento. Faz o papel de denúncia, característico do pícaro. (Id.)

Jahn (Id., p. 11) faz um comparativo entre as obras Auto da Compadecida e O Juiz da Beira, de Gil Vicente: “estes dramaturgos seguem as formulações do teatro medieval e ao mesmo tempo as inovam. (…) buscam na linguagem popular uma fonte para os temas, os diálogos e os tipos de personagens em suas peças”. E é notório que Gil Vicente e Ariano Suassuna usam linguagem popular e comicidade como recurso para desnudar uma sociedade semifeudal sem chocar o público. Mas isto chega a ser escancarado pelo narrador personagem suassuniano (o Palhaço) que representa o próprio autor da peça:
Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade. (SUASSUNA, 2004, p. 22, 23)
E mais adiante:
Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades. (Id., p. 23, 24)
E nesta relação semifeudal há de se notar a submissão a personagens não apenas da classe eclesiástica, mas também ao Padeiro e a Mulher, bem como Antonio Moraes; respectivamente, diríamos, burgueses e senhor feudal. E é aproveitando-se da avareza desses personagens que João Grilo e Chicó, “desprotegidos e excluídos da sociedade” (JAHN, 2008, p. 19), fazendo esperto uso de suas faculdades mentais, lutam para sobreviver e se sentirem justiçados. Personagens como o Cabo Rosinha (em O Juiz da Beira) engodam-se pela própria vaidade.

A religiosidade e até mesmo a pobreza são exaltadas como virtudes por este modelo de teatro. Por outro lado, Gil Vicente acredita que o mal cria raízes dentro do homem e, por isso, não merece a salvação. (JAHN, 2008) Mas é no plano espiritual que surge o tipo de personagem supraterreno e, ainda assim, de relação íntima com os homens. Neste caso, Nossa Senhora (A Compadecida) e Jesus Cristo (Manuel). Suassuna se aproxima dos autos vicentinos pela noção de julgamento, mas se distancia na medida em que o Diabo não é o juiz. Pelo contrário, o dramaturgo brasileiro humaniza a figura de Cristo. E sobre essa aproximação, Henrique Oscar (apud SUASSUNA, 2004, p. 10, grifo nosso) afirma que “não houve cópia, … mas autêntica recriação em termos brasileiros”.

De narrativa simples e divertida, o “encanto” da obra, como diz Oscar (apud ibid.), “está nesse ar de ingenuidade que a caracteriza, na singeleza dos recursos empregados, no primarismo e no argumento, tudo a nosso ver perfeitamente dentro do espírito popular em que a obra se inspira”.

Notas de fim

Arquétipo. “Sobre o personagem arquétipo, Bentley (1967) diz ser aquele que tipifica caracterizações de maior amplitude e que, a rigor, condensa mais características humanas gerais do que idiossincráticas individuais ou de determinada classe.” (DAGUERRE, 2005, p. 78, parênteses inseridos)
Arlequim. Na comédia italiana, “Os zanni [Arlecchino, Brighella, entre outros]” (DAGUERRE, 2005, p. 80).

______
Análise apresentada na disciplina de Literatura Pernambucana do curso de Letras da Faculdade Frassinetti do Recife - FAFIRE, sob encomenda da Prof.ª Doutora Vilani Pádua.

Referências

DAGUERRE, Walter. Que tipo é esse? - apontamentos sobre a natureza de personagens na dramaturgia de Ariano Suassuna. In: RABETTI, Beti (Org.). Teatro e comicidades: estudos sobre Ariano Suassuna e outros ensaios. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 76-80.
JAHN, Lívia Petry. As Raízes Ibéricas e Populares do Teatro de Ariano Suassuna. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17165>. Acesso em: 30 mai. de 2014, às 23:01.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Prefácio de: Henrique Oscar. 34. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2004.
TAVARES, Braulio. Tradição popular e recriação no Auto da Compadecida. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 36. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014, p. 177-183.

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