Por: Aline Maelly & Wendell Santos
Ariano Suassuna Foto: Wilson Dias/ABr - Agência Brasil, CC BY 3.0 br, Wikipédia. |
“Os dramaturgos populares têm mentalidade coletiva; gostam de recorrer a um repertório de motivos (i.e., assuntos) que compartilham com seu público.” (TAVARES, 2014, p. 181, parênteses inseridos) Segundo o autor da peça, a obra tem inspiração nas histórias e romances populares do Nordeste. (OSCAR apud SUASSUNA, 2004) De fato, alguns episódios da peça podem têm suas fontes em folhetos como O dinheiro, de Leandro Gomes de Barros (1865-1918), História do cavalo que defecava dinheiro (João Martins de Athayde) e O castigo da Soberba (anônimo), histórias que são também reproduzidas por Leonardo Mota na obra Violeiros do Norte (1925), com participação do cantador Anselmo Vieira de Sousa (1867-1926). (TAVARES, 2014; DAGUERRE, 2005)
Na verdade, encontra-se em Auto da Compadecida (originalmente, A Compadecida) elementos de uma época ainda mais remota e de lugares bem distintos, como a
tradição das peças da Alta Idade Média, geralmente designadas como Os Milagres de Nossa Senhora (do séc. XVI), em que, numa história mais ou menos – e às vezes muito – profana, o herói em dificuldade apela para Nossa Senhora, que comparece e o salva, tanto no plano espiritual com atemporal. (OSCAR apud SUASSUNA, 2004, p. 9, 10)
Quanto à forma, é inevitável não aproximarmos a obra de Ariano Suassuna aos autos de Gil Vicente e ao teatro ibérico do séc. XVII. Segundo Daguerre (2005), as fontes matriarcais de Auto da Compadecida remontam ao teatro medieval através de personagens arquétipos* (veja notas de fim) presentes no imaginário popular nordestino. Como exemplo, cita Peleja da alma, do cantador paraibano Silvino Pirauá, cantiga na qual um homem morre e sua alma vai ao céu para ser julgada.
Lá chegando, é condenada ao inferno por Jesus, devido a sua conduta pouco cristã na Terra. A alma, então, pede ajuda a São Miguel e a Nossa Senhora, a Compadecida. (Id., p. 79)
Também é possível encontrar algo em comum com a commedia dell’arte, principalmente em João Grilo, que lembra as características do arlequim.* (Id.; OSCAR apud SUASSUNA, 2004; TAVARES apud SUASSUNA, 2014)
Na tradição, a dupla de personagens enganador/enganado caracteriza-se pela opressão dos mais abastados sobre aqueles socialmente vulneráveis que, aproveitando-se da avareza de seus senhores, usam de esperteza para poder sobreviver. Em Auto da Compadecida, João Grilo oferece ao padeiro e sua esposa, seus patrões, um “gato que descome dinheiro”, episódio inspirado na obra já citada de João Martins de Athayde. O maior investimento e inovação que Ariano Suassuna talvez tenha feito no personagem enganador de sua obra pode ter sido a de duplicá-lo trazendo a João Grilo um amigo e companheiro de espertezas – Chicó, inspirado numa figura real que Suassuna conhecera em Taperoá. (TAVARES, 2014)
João Grilo, uma nova encarnação de Pedro Malazarte, Pedro Urdemalas e Lazarillo de Tormes, entre outros (Id.), se baseia no pícaro (o astuto, ardiloso) da tradição ibérica e reflete, por isso, um aspecto da tradição popular tanto de Portugal e Espanha como do nordeste brasileiro. Ele “vence o patrão pela burla e pela astúcia. Assim o poder se subverte e surge o cômico, o satírico, a vingança do povo contra quem o oprime”, afirma Lyvia Petry Jahn (2008, p. 24) em seu trabalho de conclusão de curso para a graduação em Letras e Literatura Portuguesa (UFRS). O “amarelo” junto aos personagens de Cristo e da Compadecida, é responsável por desvendar a verdade sobre cada um dos demais indivíduos no julgamento. Faz o papel de denúncia, característico do pícaro. (Id.)
Jahn (Id., p. 11) faz um comparativo entre as obras Auto da Compadecida e O Juiz da Beira, de Gil Vicente: “estes dramaturgos seguem as formulações do teatro medieval e ao mesmo tempo as inovam. (…) buscam na linguagem popular uma fonte para os temas, os diálogos e os tipos de personagens em suas peças”. E é notório que Gil Vicente e Ariano Suassuna usam linguagem popular e comicidade como recurso para desnudar uma sociedade semifeudal sem chocar o público. Mas isto chega a ser escancarado pelo narrador personagem suassuniano (o Palhaço) que representa o próprio autor da peça:
Auto da Compadecida! O julgamento de alguns canalhas, entre os quais um sacristão, um padre e um bispo, para exercício da moralidade. (SUASSUNA, 2004, p. 22, 23)
E mais adiante:
Ao escrever esta peça, onde combate o mundanismo, praga de sua igreja, o autor quis ser representado por um palhaço, para indicar que sabe, mais do que ninguém, que sua alma é um velho catre, cheio de insensatez e de solércia. Ele não tinha o direito de tocar nesse tema, mas ousou fazê-lo, baseado no espírito popular de sua gente, porque acredita que esse povo sofre, é um povo salvo e tem direito a certas intimidades. (Id., p. 23, 24)
E nesta relação semifeudal há de se notar a submissão a personagens não apenas da classe eclesiástica, mas também ao Padeiro e a Mulher, bem como Antonio Moraes; respectivamente, diríamos, burgueses e senhor feudal. E é aproveitando-se da avareza desses personagens que João Grilo e Chicó, “desprotegidos e excluídos da sociedade” (JAHN, 2008, p. 19), fazendo esperto uso de suas faculdades mentais, lutam para sobreviver e se sentirem justiçados. Personagens como o Cabo Rosinha (em O Juiz da Beira) engodam-se pela própria vaidade.
A religiosidade e até mesmo a pobreza são exaltadas como virtudes por este modelo de teatro. Por outro lado, Gil Vicente acredita que o mal cria raízes dentro do homem e, por isso, não merece a salvação. (JAHN, 2008) Mas é no plano espiritual que surge o tipo de personagem supraterreno e, ainda assim, de relação íntima com os homens. Neste caso, Nossa Senhora (A Compadecida) e Jesus Cristo (Manuel). Suassuna se aproxima dos autos vicentinos pela noção de julgamento, mas se distancia na medida em que o Diabo não é o juiz. Pelo contrário, o dramaturgo brasileiro humaniza a figura de Cristo. E sobre essa aproximação, Henrique Oscar (apud SUASSUNA, 2004, p. 10, grifo nosso) afirma que “não houve cópia, … mas autêntica recriação em termos brasileiros”.
De narrativa simples e divertida, o “encanto” da obra, como diz Oscar (apud ibid.), “está nesse ar de ingenuidade que a caracteriza, na singeleza dos recursos empregados, no primarismo e no argumento, tudo a nosso ver perfeitamente dentro do espírito popular em que a obra se inspira”.
Notas de fim
Arquétipo. “Sobre o personagem arquétipo, Bentley (1967) diz ser aquele que tipifica caracterizações de maior amplitude e que, a rigor, condensa mais características humanas gerais do que idiossincráticas individuais ou de determinada classe.” (DAGUERRE, 2005, p. 78, parênteses inseridos)
Arlequim. Na comédia italiana, “Os zanni [Arlecchino, Brighella, entre outros]” (DAGUERRE, 2005, p. 80).
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Análise apresentada na disciplina de Literatura Pernambucana do curso de Letras da Faculdade Frassinetti do Recife - FAFIRE, sob encomenda da Prof.ª Doutora Vilani Pádua.
Referências
DAGUERRE, Walter. Que tipo é esse? - apontamentos sobre a natureza de personagens na dramaturgia de Ariano Suassuna. In: RABETTI, Beti (Org.). Teatro e comicidades: estudos sobre Ariano Suassuna e outros ensaios. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005, p. 76-80.
JAHN, Lívia Petry. As Raízes Ibéricas e Populares do Teatro de Ariano Suassuna. Disponível em: <http://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/17165>. Acesso em: 30 mai. de 2014, às 23:01.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. Prefácio de: Henrique Oscar. 34. ed. Rio de Janeiro: Agir, 2004.
TAVARES, Braulio. Tradição popular e recriação no Auto da Compadecida. In: SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida. 36. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2014, p. 177-183.
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