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Catimbó - análise do poema de Ascenso Ferreira

Ascenso Ferreira, Paço Alfândega. Foto: Wendell S.

O poema Catimbó
Abaixo da estrofe, em letra menor, a análise.

Mestre Carlos, rei dos mestres,
aprendeu sem se ensinar…
– Ele reina no fogo!
– Ele reina na água!
– Ele reina no ar!

Mestre Carlos: Mestre (guia espiritual) da Jurema Sagrada, rito que mescla a magia indígena, africana, europeia, elementos do catolicismo popular etc. Segundo a religião, Mestre Carlos é um excelente mestre de adivinhação e tratos amorosos.
“Aprendeu sem se ensinar”: iniciou-se ao culto da Jurema Sagrada sozinho.

Por isto, em minha amada, acenderá a paixão que consome!
Umedecerá sempre, em sua lembrança, o meu nome!
Levar-lhe-á os perfumes do incenso que lhe vivo a queimar.

Percebe-se que fora feito um “catimbó” (feitiço) para a amada. Observe a estrofe seguinte.

E ela há de me amar.
Há de me amar…
Há de me amar…
– Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!

Após o “catimbó”, ele espera convicto pela sua amada, pois confia em Mestre Carlos.

À luz do sete-estrelo nós havemos de casar!
E há de ser bem perto.
Há de ser tão certo.
como que este mundo tem de se acabar…

Sete-estrelo: as Plêiades, na constelação de Touro. Aqui, nota-se o encontro da Jurema Sagrada com a Astrologia.

Foi a jurema da sua beleza que embriagou os meus sentidos!
Eu vivo tão triste como os ventos perdidos
que passam gritando na noite enorme…

Jurema: pode se referir tanto ao culto quanto à árvore considerada sagrada e à bebida feita a partir da árvore, que embriaga e leva ao transe.

Porque quero gozar o viço que no seu lábio estua!
Quero sentir sua carícia branda como um raio da lua!
Quero acordar a volúpia que no seu seio dorme…
E hei de tê-la,
hei de vencê-la,
ainda mesmo contra seu querer…
– Porque de Mestre Carlos é grande o poder!

Não há o que querer quando existe intervenção de Mestre Carlos.

Pelas três-marias… Pelos três reis magos… Pelo sete-estrelo…
Eu firmo esta intenção,
bem no fundo do coração,
e o signo-de-salomão
ponho como selo…

Três-marias; três reis magos: elementos do Catolicismo popular. Note-se que os reis magos cultuados pelo Catolicismo eram, na verdade, astrólogos, por isso guiados por uma estrela.
Signo de Salomão: a estrela de Davi, selo de Salomão. Elemento do Judaísmo que adentra o Cristianismo e é alcançado pelo culto da Jurema.

E ela há de me amar…
Há de me amar…
Há de me amar…
– Como a coruja ama a treva e o bacurau ama o luar!

Porque Mestre Carlos, rei dos mestres,
reina no fogo… reina na água… reina no ar…
– Ele aprendeu sem se ensinar…

Ponto de Mestre Carlos (isto é, cantiga de terreiro)
Transcrição da interpretação do Juremeiro Geraldo Oliveira


[REFRÃO] Mestre Carlos é bom mestre,
aprendeu sem lhe ensinar. (bis)
Três dias passou caído
no tronco do Juremá. (bis)
Mas quando se levantou
foi mestre pra trabalhar. (bis)

Juremá é o lugar onde vivem os mestres, mas aqui se refere ao tronco literal da árvore da Jurema, onde o jovem Carlos passou três dias desacordado antes de morrer e “encantar” (tornar-se mestre).
Levantou: em espírito, como mestre.

Pitiguari está cantando.
Oh, meu Deus, o que será? (bis)
Um canta, o outro assobia;
a sorte, Deus é quem dá. (bis)

Pitiguari: passarinho popularmente conhecido como “gente-de-fora-vem”. Seria o jovem Mestre Carlos chegando durante o “toque” que seu pai realizara em busca de um resposta para o sumiço do filho? Carlos ressurge como mestre após três dias, algo que lembra o "ressurgimento" de Cristo após a sua morte por tortura.
Um canta, o outro assobia”: alguém canta no terreiro e o pitiguari assobia para avisar a chegada de “alguém de fora”.

[REFRÃO]
Pitiguari está cantando.
Oh, meu Deus, o que será? (bis)
Um canta, o outro assobia;
a sorte, Deus é quem dá. (bis)
(“Saravá à Jurema Sagrada. Saravá a Mestre Carlos.”)

Com algumas variações, os diversos pontos de Mestre Carlos assemelham-se em refrão e narrativa com Catimbó. Enquanto um visa prestar culto à Entidade, este último tanto o enaltece/cultua quanto mostra o amor desesperado de um homem pela sua amada que, por meio de um catimbó, ‘há de o amar’.

Compreender o poema a partir de pesquisa bibliográfica pode ser exaustivo, uma vez que seu tema principal acontece em comunidades de tradição oral – a Jurema Sagrada acontece neste meio. Assim, inserir-se na tradição criando pontes com outros ritos (é o que faz a Jurema Sagrada) pode ser o caminho mais viável e fidedigno para compreender as histórias, as vivências e as sabedorias daqueles ancestrais que Ascenso Ferreira eternizou em sua poesia.
“Poeta quasi desconhecido hontem – Ascenso Ferreira, com a publicação de Catimbó – ficará sendo, de hoje em diante, uma das figuras mais reprezentativas do actual «partido», cabra batuta de quem a gente deve esperar muita coisa bôa que marque difinitivamente.” (F., 1927, p. 23)

Pesquisa feita para a disciplina de Literatura Pernambucana, ministrada pela Prof.ª Doutora Vilani Pádua, no curso de Letras da Faculdade Frassinetti do Recife - FAFIRE.

Referências

A BARCA. Mestre Carlos Nãnã Giê. Vários intérpretes. Disponível em: <http://letras.ms/2EHr>. Acesso em: 29 mar. 2017, às 03:17.
F. Ascenso Ferreira – Catimbó: Off. da <<Revista do Norte>>. Verde: Revista Mensal de Arte e Cultura. Cataguazes (MG), n. 4, ano 1, p. 23.
LOYCE, Luciene. Mestre Carlos. In: Jurema Sagrada. Intérprete: Luciene Loyce. Faixa 06. Disponível em: https://youtu.be/7rDzv3GXh1A. Acesso em: 29 mar. 2017, às 03:15.
OLIVEIRA, Geraldo. Cantiga de Mestre Carlos. Intérprete: Juremeiro Geraldo. Disponível em:  https://youtu.be/aiH42Dd34x4. Acesso em: 23 fev. 2017, às 20:19.
PEIXOTO, Ignacio Francisco. Ascenso Ferreira – Catimbó: Officinas da “Revista do Norte”. Verde: Revista Mensal de Arte e Cultura. Cataguazes (MG), n. 4, ano 1, p. 26.

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