Por: Wendell Santos.
Provavelmente, a Septuaginta Grega (ou Versão dos Setenta), iniciada em 280 AEC, é um dos maiores trabalhos de tradução já feitos na história. Depois dela, vieram as traduções para o copta, o siríaco, o latim e inúmeras outras línguas que, por fim, fez a Bíblia se tornar atualmente disponível “inteira ou em parte em cerca de 2.600 idiomas” (WATCH TOWER & TORRE DE VIGIA, 2015, p. 1782), incluindo línguas indígenas e de antigas civilizações.
A necessidade de uma tradução surge não apenas para levar uma mensagem a outros povos, mas, também, quando uma língua deixa de ser falada. Isto foi o que convenceu cerca de 70 eruditos judeus a produzirem a primeira tradução das Escrituras Hebraico-Aramaicas (ou Antigo Testamento) para o grego koiné (ou Comum), que era considerada uma língua universal naquela época. O texto produzido originalmente em hebraico antigo já não era mais compreendido pela grande maioria dos judeus que, agora, falava grego ou aramaico. O hebraico antigo, então, havia se tornado uma língua quase morta, pois estava deixando de ser usada. Assim surgiu a Versão dos Setenta.
O Evangelho do St. Jesus Cristo de acordo com João (Vulgata Clementina, ed. 1922). Crédito: Marie-Lan Nguyen - Domínio público. |
A Vulgata Latina (“Latim Vulgar”), produzida por Jerônimo sob encomenda de Damásio, Bispo de Roma em 382 EC, surgiu a partir do desejo de abolir confusões causadas por tradutores independentes que produziram traduções das Escrituras para a língua latina, como a Vetus Latina (“Latim Antigo”), por exemplo. (HOUGHTON, VETUS LATINA) Após ter sido a Vulgata Latina há muito tempo produzida mediante consultas à Septuaginta Grega, o Papa Clemente VIII publicou uma revisão dessa tradução em 1592, que passou a ser conhecida como Vulgata Clementina. Também em latim, serviu como base das traduções para línguas vernáculas produzidas no contexto do Catolicismo e de outras instituições religiosas publicadoras da Bíblia.
O latim, a língua da Igreja, é uma língua da família indo-europeia oriunda da região do Lácio, onde ficava a antiga cidade de Roma fundada no século VIII AC. De acordo com Douglas Tufano (1998, p. 347) “À medida que Roma crescia e conquistava novos povos, os romanos impunham o latim como meio de comunicação obrigatório, transformando-o assim em língua oficial por toda a extensão do império.” Contudo, o autor afirma que
O latim levado pelos soldados, colonos e comerciantes fixou-se em diversas regiões, inclusive na Península Ibérica, e, influenciado pelas línguas dos povos dominados, com o tempo se transformou bastante. Como resultado dessas transformações regionais do latim, foram nascendo dialetos que, mais tarde, deram origem a várias línguas. (Idem., p. 348)
Foi a partir dessas transformações que surgiram as línguas chamadas românicas ou neolatinas, dentre as quais se destacam o italiano, o francês, o português, o espanhol e o romeno.
“Na língua existe vida, na língua existe morte.” – Provérbio havaiano (WARSCHAUER, 2001).
Depois de tantos anos, seria o latim hoje uma língua morta, assim como o hebraico utilizado nas Escrituras originais? Data venia, não. O latim não deixou de ser usado. É a língua oficial de um estado organizado e devidamente reconhecido pelas autoridades mundiais, o Vaticano – o único lugar do mundo onde existe um caixa eletrônico com instruções em latim. (HILGERT & PEREIRA JUNIOR, LÍNGUA PORTUGUESA/SP, 12/2011) A Igreja persiste em usar o latim eclesiástico (da Igreja, minimamente diferente do clássico e do vulgar) em seus meios, em muitos de seus ritos e em fazer publicações impressas em língua latina, como o Missal Romano e o livro de orações Opus Dei.
“In princípio et ante saecula Deus erat Verbum, et ipse nasci dignátus est Salvátor mundi.” (Missal Romano¹, v. traduções)
O português, assim como todas as línguas, incorpora estrangeirismos em seu vocabulário como a priore, alter ego, apud, carpe diem, Corpus Christi, curriculum vitae, et alii (et al.), habeas corpus, idem (id.), id est (i.e.), ibidem (ibid.), in memoriam, lato sensu, mea culpa, per capita, status quo, vade mecum, etc., de forma a preservar algo que aparentemente não é mais utilizado. Hibridismo, “o processo de formação de palavras compostas por elementos de línguas diferentes” (MESQUITA & MARTOS, 1987, p. 78), também é algo comum na língua portuguesa: automóvel (auto: grego; móvel: latim), endovenoso (endo: grego; venoso: latim), etc. (Id.)
No contexto político, muitos deputados preferem iniciar seus discursos com data venia, expressão que significa “dada a licença”, quando visam discordar do que fora dito anteriormente por outro político no Congresso. O atual presidente em exercício Michel Temer (PMDB-SP) engrossou o coro dos que defendem o latim como uma língua viva ao dirigir uma polêmica carta para a Presidente afastada Dilma Rousseff (PT) que iniciava com “verba volant, scripta manent”, i.e., “as palavras voam, os escritos permanecem”. (BIANCHI, UOL/RJ, 15/12/205)
“Caelum noctis;/ in tenebris/ astra et astra et luna/ non nubilae/ caelum serenum/ tantus cantus ventus” (Astra et Luna, Enya).²
Enya Brennan. Fonte: http://enya.com/about/. |
Na música, composições da Idade Média, como o réquiem Dies Irae (“Dia de Ira”, de Tomaso de Celano), do século XIII, continuam a serem cantadas atualmente em sua versão original gregoriana e em concertos nas versões do pianista austríaco Wolfgang Amadeus Mozart, do galês Karl Jenkins ou da banda americana Autumn Tears. Da mesma forma fez o alemão Carl Orff (1895-1982) em 1936, quando musicalizou os poemas dramáticos chamados Carmina Burana (lat. “Canções de Beuern”; séc. XIII), encontrados na Baviera, Alemanha. Cantores como a irlandesa Enya e as bandas Era, da França, e Enigma, da Alemanha e Romênia, fazem sucesso com composições em latim, que caem no gosto das pessoas mesmo quando não compreendem o seu significado, deixando evidente que o latim é uma língua apreciada na contemporaneidade inter-religiosa.
Os livros de Harry Potter usam palavras em latim para nomes e dizeres [de encantamento] e, pelo menos, dois deles foram traduzidos para o latim (“Harrius Potter et Philosophi Lapis” [Harry Potter e a Pedra Filosofal]), como muitos outros de Dr. Seuss (“Cattus Petasatus” [O Gato de Chapéu]). Filmes como “O Gladiador” e “Troia” também emprestaram glamour ao mundo antigo. (HU, THE NEW YORK TIMES/NY, 07/10/2008, colchetes inseridos)
JK Rowling, que escreveu os livros de Harry Potter,
estudou latim como uma disciplina subsidiária na Universidade de Exeter e frequentemente baseia o que escreve em mito clássico, retórica e nomenclatura. Em particular, Rowling geralmente cria suas palavras mágicas a partir do latim clássico (MADISON, OXFORD DICTIONARIES/NY, 23/07/2013).
O fato de não existirem mais falantes nativos não significa que essa língua deixou de existir. Uma língua morta para no tempo e não se desenvolve mais. O léxico e toda a sua estrutura tornam-se limitados ao momento em que deixa de ser usada. Diferentemente do hebraico antigo e outras línguas não faladas mais, o latim vem adquirindo novos vocabulários para designar coisas que, no tempo de São Jerônimo e do Papa Clemente VIII, por exemplo, não existiam (e.g., avião [velivolum], batata frita [globulus solanianus], CD [astrictum sonorumque orbem], computador [instrumentum computatoruim], máquina de lavar roupa [machina linteorum lavatoria], overdose [immodica medicamenti stupefactivi iniectio], TV a cabo [teleorasis cum transmissione per restem tenacem], etc.). (HILGERT & PEREIRA JUNIOR, LÍNGUA PORTUGUESA/SP, 12/2011) Não se pode negar a dinamicidade da qual a língua latina ainda pode desfrutar.
Segundo David Crystal (2000, p. 1), “dizer que uma língua está morta é como dizer que uma pessoa morreu. Não poderia ser de outro modo – pois as línguas não tem nenhuma existência sem as pessoas.” E continua: “Uma língua morre quando ninguém mais fala ela.” (Ibid.) Mas as línguas antigas continuam a serem estudadas e traduzidas! Ainda assim, a continuidade de seu estudo não irrompeu no decreto de seu contínuo desenvolvimento. Se ao longo do tempo, uma língua se modifica dentro de seu próprio contexto, ainda mais deve se quiser se modernizar e traduzir através das eras. É por isso que o latim ainda não morreu.
“Mala aurea in lectis argenteis, qui loquitur verbum in tempore suo.” – Proverbia 25:11 (Biblia Sacra juxta Vulgatam Clementinam)³.
AGRADECIMENTOS: Meu MUITO OBRIGADO ao Prof. Mestre Bruno Piffardini, que colaborou com algumas traduções latim-português, e ao leitor Vinycius Bezerra, que cordialmente emprestou seu exemplar do Missal Romano (relíquia) como instrumento complementar para a elaboração deste trabalho. Também agradeço a Prof.ª Doutora Ângela Torres, pois forneceu as corretas orientações de estudo e me fez apreciar a língua de um modo produtivo e prazeroso. Gratie!
TRADUÇÕES:
- Missal Romano: "No princípio, e antes dos séculos, Deus era a Palavra. E Ele dignou-se a nascer Salvador do mundo." (Nossa)
- Enya: "O céu noturno;/ na escuridão/ as estrelas e as estrelas e a lua,/ nenhuma nuvem/ um céu sereno/ o forte canto do vento." (As Estrelas e a Lua, nossa)
- Proverbia 25:11: "Como maçãs de ouro em esculturas de prata é a palavra falada no tempo certo." – Provérbios 25:11 (versão da Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada em português brasileiro).
Referências
BIANCHI, Paula. Latim: a língua morta mais viva na política e no cotidiano nacional. UOL NOTÍCIAS/RJ, 15/12/2015. Disponível em: <http://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2015/12/25/latim-a-lingua-morta-mais-viva-na-politica-e-no-cotidiano-nacional.htm>. Acesso em: 26 fev. 2016, às 17:41.
CRYSTAL, David. What is language death? In: Language death. Madri: Press Syndicate of the University of Cambridge, 2000.
ENYA; RYAN, Roma. Astra et Luna. Intérprete: Enya. In: Dark Sky Island. Dublim: Sony/ATV Publishing Ltd., 2015. 1 disco compacto, faixa 9.
HILGERT, Mariana; PEREIRA JUNIOR, Luiz Costa. O latim dá sinais de vida. LÍNGUA PORTUGUESA/SP, 12/2011. Disponível em: <http://revistalingua.com.br/textos/65/artigo249052-1.asp>. Acesso em: 26 fev. 2016, às 17:30.
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